GRANDES CRONISTAS BRASILEIROS
Carlos Heitor Cony
Biografia
Carlos Heitor Cony nasceu em 1926 no Rio de Janeiro. Trabalhou em jornais como redator, copidesque e colunista.
Escreveu crônicas, contos, ensaios, reportagens, adaptações , livros infanto-juvenis etc. Dentre suas obras estão: O Ventre , O ato e o fato, Posto Seis e Quase memória .
Recebeu vários prêmios e no ano 2000 foi eleito pela Academia Brasileira de Letras.
Carlos Heitor Cony é muito conhecido pelas crônicas que escreve. Na crônica abaixo ele fala do Salão dos Poetas Românticos da Academia Brasileira de Letras .
Crônica publicada no jornal Folha de São Paulo, em 23 de outubro de 2001.
Salão dos românticos
Na Academia Brasileira de Letras há um salão muito bonito mas um pouco sinistro. É o Salão dos Poetas Românticos, com bustos dos nossos principais românticos na poesia: Castro Alves, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela e Álvares de Azevedo.
Os modernistas de 22, e antes deles os parnasianos, decidiram avacalhar com essa turma de jovens, que trouxe o Brasil para dentro de nossa literatura. Foram os românticos, na prosa e no verso, que colocaram em nossas letras as palmeiras, os índios, as praias selvagens, o sabiá, as borboletas de asas azuis, a juriti - o cheiro e o gosto de nossa gente.
Não fosse o romantismo, ficaríamos atrelados ao classicismo das arcádias, à pomposidade do verso burilado que tem o equivalente cinematográfico nos efeitos especiais. Sem falar nos poemas-piadas, a partir de 1922, tidos como vanguarda da vanguarda.
Foram todos jovens: Casimiro morreu com 21 anos, Álvares de Azevedo com 22, Castro Alves com 24, Fagundes Varela com 34. O mais velho de todos, Gonçalves Dias, mal chegara aos 40 anos.
O Salão dos Poetas Românticos é também sinistro, pois é de lá que sai o enterro dos imortais, que morrem como todo mundo, entre outras razões, porque a maioria deles não tem onde cair morto. (A piada é de Olavo Bilac).
José de Alencar também devia estar ali. Mas está perto, como perto está o busto de Euclides da Cunha. Foram pioneiros na valorização dos temas brasileiros, bem antes de 1922.
Com exceção de Euclides, que foi acadêmico em vida, todos são anteriores à fundação da Academia, estão imortalizados em bustos. São patronos de cadeiras em que sentaram Machado de Assis, Coelho Neto, Bilac, Guimarães Roa, Darcy Ribeiro, Barbosa Lima Sobrinho, Jorge Amado e outros. Todos brasileiros. E de letras.
Carlos Heitor Cony. Agência Folha. Publicada no jornal Folha de São Paulo em 23/10/2001
Mário Prata
Biografia
Mário Alberto Campos de Morais Prata nasceu em Uberaba (MG) em 1946.
Trabalhou em importantes jornais , escreveu editoriais, reportagens e artigos.
Dentre seus livros pode-se citar: O Morto que morreu de rir; Preto no Branco e 100 Crônicas.
Além de livros escreveu novelas, roteiros e peças para teatro e através desse vasto trabalho recebeu prêmios internacionais e nacionais .
Mário Prata escreve semanalmente no jornal O Estado de São Paulo.
Crônica publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 5 de Janeiro de 1994.
Quem tem medo da mortadela?
Modismo é conosco mesmo. O brasileiro adora inventar moda. E todo mundo vai atrás dela. A última do brasileiro é "primeiro mundo". Os publicitários nativos inventaram a expressão e agora tudo que nós queremos tem que ser coisa do "primeiro mundo".
O carro é do primeiro mundo, a bebida é do primeiro mundo, a mulher é do primeiro mundo. Cineastas querem fazer filme de primeiro mundo, diretores de teatro trazem a moda lá da Europa. E os preços, evidentemente, também são de primeiro mundo.
Será que não nos bastam os exemplos de Portugal, Espanha, Irlanda e Grécia, que se debruçaram na mamata da CEE e agora enfrentam uma séria recessão e desemprego?
Por que essa mania, de repente, de querer virar primeiro mundo? De terceiro para primeiro? Não seria o caso de fazer um estágio, antes, no segundo mundo?
Os do primeiro mundo adoram as coisas aqui do terceiro. Por exemplo, a caipirinha. Alemães, ingleses, americanos, suecos, caem trôpegos pelas calçadas de Copacabana. Quer coisa mais brasileira, mais terceiromundista, mais caipira e mais barata? Mas já estão avacalhando com ela. Agora já tem caipirinha de vodca e, pasmem, de rum. Caipirinha sempre foi e sempre será cachaça. Coisa de caipira mesmo. E é esta bebida que os europeus vêm procurar aqui. Mas já meteram a vodca e o rum nela para ficar com cara de primeiro mundo. Vamos deixar a caipirinha caipira, brasileiros!
Toda essa introdução para chegar à mortadela. Ou mortandela, como preferem garçons e padeiros. Quer coisa mais brasileira que a mortadela? Claro que ela veio lá da Itália. Mas tornou-se, talvez pelo baixo preço, o petisco do brasileiro. O nome vem de murta, uma plantinha italiana que lhe valeu o nome. Infelizmente o brasileiro acha que mortadela é coisa de pobre, de faminto. E o que somos nós, cara-pálidas?
A cachaça e a mortadela são produtos do Brasil, do nosso querido terceiro mundo. Mas acontece que há um preconceito dos patrícios contra a cachaça e a mortadela. Contra a mortadela o caso é mais grave. Se você oferecer mortadela numa festa, vão te olhar feio. Você deve estar perto da falência.
Neste Natal e no Reveillon freqüentei várias mesas, e em nenhuma havia mortadela. Queijos de primeiro mundo, vinho de primeiro mundo, perfumes de primeiro mundo, até um peru argentino eu comi. Mas mortadela que é bom, nada. Nem uma fatiazinha.
Quando o brasileiro irá assumir que a mortadela é a melhor entrada do mundo? Quando você for para a Europa, não adianta pedir dead her que não vai encontrar. Nem muerta dela.
Mas nem tudo está perdido. No dia 1º do ano almocei com o casal Annette e Tenório de Oliveira Lima, e lá estava a mortadela, fresquinha no prato rósea. Um limãozinho em cima, um pedacinho de pão e viva o terceiro mundo, visto lá de cima do apartamento do Morumbi.
No mesmo dia, de noite, fui ao peemedebista Bar Nabuco, debaixo de frondosas sibipirunas da Praça Vilaboim e estava lá, no cardápio, toda sem-vergonha, a mortadela brasileira. Achei que estava começando bem o ano. Vai ser um Ano Bom, como se dizia antigamente. Se os novos-ricos do PMDB estão comendo mortadela, nem tudo está perdido. No Gargalhada Bar mais para PT, há um excelente sanduíche de mortadela.
E, nas boas padarias do ramo você ainda encontra a verdadeira mortadela, aquela que chega no balcão, feita na chapa, sem queimar muito, servida em pãezinhos saídos do forno.
Vamos deixar o primeiro mundo para lá. Vamos, este ano, tomar cachaça e comer mortadela. É muito mais barato ser pobre. Deixemos que o primeiro mundo exploda entre eles, mesmo tomando uísque escocês e comendo queijo fedido.
Por favor senhores brasileiros primeiro-mundistas, vamos deixar de frescura. Mortadela é o que há. É um barato.
Feliz 94 para todos vocês. Muita cachaça e muita mortadela. Apesar de tudo, o primeiro mundo é triste e melancólico. Continuemos felizes e alegres com a nossa cachaça e o nossa gostosa mortadela.
E que os candidatos à presidência deste nosso país do terceiro mundo não se esqueçam que o Jânio sempre se elegeu comendo "mortadela" e não caviar do primeiro mundo.
Texto extraído do livro:
Filho é bom, mas dura muito. Mário Prata. Editora Maltese. São Paulo. 1995. p. 157-159
Rubem Braga
Biografia
Rubem Braga (1913-1990) foi cronista, poeta, repórter, tradutor e crítico de artes plásticas.
Escreveu grandes obras como: Casa do Braga, O Conde e o Passarinho e Três Primitivos .
Tornou-se conhecido do grande público ao escrever crônicas em jornais de grande circulação.
Na crônica abaixo, Rubem Braga retrata um fato do cotidiano porém a maneira de tratar o fato dá a essa crônica a característica da universalidade que distingue o autor tornando-o um renovador da crônica brasileira.
O padeiro
Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.
Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:
- Não é ninguém, é o padeiro!
Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar aquilo?
"Então você não é ninguém?"
Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém...
Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.
Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!"
E assobiava pelas escadas.
Texto extraído do livro:
Para gostar de ler, Vol I -Crônicas . Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga. 12ª Edição. Editora Ática . São Paulo.1989. p.63 - 64.
Clarice Lispector
Biografia
Clarice Lispector (1920-1977), nasceu na Ucrânia e chegou ao Brasil com seus pais em 1921.
Trabalhou como colunista, redatora e cronista de jornais.
Publicou grandes obras como: Perto do Coração Selvagem, O Lustre e Laços de Família.
No final dos anos 60 Clarice passou a escrever crônicas para O Jornal do Brasil.
Uma imagem de prazer
Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma floresta, e na floresta vejo a clareira verde, meio escura, rodeada de alturas, e no meio desse bom escuro estão muitas borboletas, um leão amarelo sentado, e eu sentada no chão tricotando. As horas passam como muitos anos, e os anos se passam realmente, as borboletas cheias de grandes asas e o leão amarelo com manchas - mas as manchas são apenas para que se veja que ele é amarelo, pelas manchas se vê como ele seria se não fosse amarelo. O bom dessa imagem é a penumbra, que não exige mais do que a capacidade de meus olhos e não ultrapassa minha visão. E ali estou eu, com borboleta, com leão. Minha clareira tem uns minérios, que são as cores. Só existe uma ameaça: é saber com apreensão que fora dali estou perdida, porque nem sequer será floresta (a floresta eu conheço de antemão, por amor), será um campo vazio (e este eu conheço de antemão através do medo) - tão vazio que tanto me fará ir para um lado como para outro, um descampado tão sem tampa e sem cor de chão que nele eu nem sequer encontraria um bicho para mim. Ponho apreensão de lado, suspiro para me refazer e fico toda gostando de minha intimidade com o leão e as borboletas; nenhum de nós pensa, a gente só gosta. Também eu não sou em preto e branco; sem que eu me veja, sei que para eles eu sou colorida, embora sem ultrapassar a capacidade de visão deles (nós não somos inquietantes). Sou com manchas azuis e verdes só para estas mostrarem que não sou azul nem verde - olha só o que eu não sou. A penumbra é de um verde escuro e úmido, eu sei que já disse isso mas repito por gosto de felicidade; quero a mesma coisa de novo e de novo. De modo que, como eu ia sentindo e dizendo, lá estamos. E estamos muito bem. Para falar a verdade, nunca estive tão bem. Por quê? Não quero saber por quê. Cada um de nós está no seu lugar, eu me submeto bem ao meu lugar. Vou até repetir um pouco mais porque está ficando cada vez melhor: o leão amarelo e as borboletas caladas, eu sentada no chão tricotando, e nós assim cheios de gosto pela clareira verde. Nós somos contentes.
Texto extraído do livro:
Para não esquecer. Clarice Lispector. Editora Rocco. Rio de Janeiro. 1999. p. 36 - 37.
Rachel de Queiroz
Biografia
Rachel de Queiroz (1910 - ) é uma das grandes escritoras da literatura brasileira. Já escreveu contos, romances, crônicas, peças de teatro, criticas literárias e livros infantis.
Nascida no Ceará, ela e sua família migram para o Rio de Janeiro no ano de 1917, fugindo de uma forte seca que assolava o Nordeste. Fatos como esse influenciariam profundamente sua literatura, que tem como uma de suas características mais marcantes o realismo com que aborda o homem nordestino e os problemas relacionados com a terra.
Rachel estreou no mundo literário muito jovem, aos 20 anos de idade, com seu romance O Quinze, que aborda temas como a seca e a pobreza.
Foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, no ano de 1977, e já recebeu diversos prêmios literários.
Grande cronista, Rachel já publicou mais de duas mil crônicas, que deram origem a diversos livros. Dentre eles está Um alpendre, uma rede, um açude - Cem crônicas escolhidas, do qual extraímos a crônica abaixo.
Ilha, dezembro de 1949.
Talvez o último desejo
Pergunta-me com muita seriedade uma moça jornalista qual é o meu maior desejo para o ano de 1950. E a resposta natural é dizer-lhe que desejo muita paz, prosperidade pública e particular para todos, saúde e dinheiro aqui em casa. Que mais há para dizer?
Mas a verdade, a verdade verdadeira que eu falar não posso, aquilo que representa o real desejo do meu coração, seria abrir os braços para o mundo, olhar para ele bem de frente e lhe dizer na cara: Te dana!
Sim te dana, mundo velho. Ao planeta com todos os seus homens e bichos, ao continente, ao país, ao Estado, à cidade, à população, aos parentes, amigos e conhecidos: danem-se! Danem-se que eu não ligo, vou pra longe me esquecer de tudo, vou a Pasárgada ou a qualquer outro lugar, vou-me embora, mudo de nome e paradeiro, quero ver quem é que me acha.
Isso que eu queria. Chegar junto do homem que eu amo e dizer para ele: Te dana, meu bem! Dora em vante pode fazer o que entender, pode ir, pode voltar, pode pagar dançarinas, pode fazer serenatas, rolar de borco pelas calçadas, pode jogar futebol, entrar na linha de Quimbanda, pode amar e desamar, pode tudo, que eu não ligo!
Chegar junto ao respeitável público e comunicar-lhe: Danai-vos, respeitável público. Acabou-se a adulação, não me importo mais com as vossas reações, do que gostais e do que não gostais; nutro a maior indiferença pelos vossos apupos e os vossos aplausos e sou incapaz de estirar um dedo para acariciar os vossos sentimentos. Ide baixar noutro centro, respeitável público, e não amoleis o escriba que de vós se libertou!
Chegar junto da pátria e dizer o mesmo: o doce, o suavíssimo, o libérrimo te dana. Que me importo contigo, pátria? Que cresças ou aumentes, que sofras de inundação ou de seca, que vendas café ou compres ervilhas de lata, que simules eleições ou engulas golpes? Elege quem tu quiseres, o voto é teu, o lombo é teu. Queres de novo a espora e o chicote do peão gordo que se fez teu ginete? Ou queres o manhoso mineiro ou o paulista de olho fundo? Escolhe à vontade - que me importa o comandante se o navio não é meu? A casa é tua, serve-te, pátria, que pátria não tenho mais.
Dizer te dana ao dinheiro, ao bom nome, ao respeito, à amizade e ao amor. Desprezar parentela, irmãos, tios, primos e cunhados, desprezar o sangue e os laços afins, me sentir como filho de oco de pau, sem compromissos nem afetos.
Me deitar numa rede branca armada debaixo da jaqueira, ficar balançando devagar para espantar o calor, roer castanha de caju confeitada sem receio de engordar, e ouvir na vitrolinha portátil todos os discos de Noel Rosa, com Araci e Marília Batista. Depois abrir sobre o rosto o último romance policial de Agatha Christie e dormir docemente ao mormaço.
*
Mas não faço. Queria tanto, mas não faço. O inquieto coração que ama e se assusta e se acha responsável pelo céu e pela terra, o insolente coração não deixa. De que serve, pois, aspirar à liberdade? O miserável coração nasceu cativo e só no cativeiro pode viver. O que ele deseja é mesmo servidão e intranqüilidade: quer reverenciar, quer ajudar, quer vigiar, quer se romper todo. Tem que espreitar os desejos do amado, e lhe fazer as quatro vontades, e atormentá-lo com cuidados e bendizer os seus caprichos; e dessa submissão e cegueira tira a sua única felicidade.
Tem que cuidar do mundo e vigiar o mundo, e gritar os seus brados de alarme que ninguém escuta e chorar com antecedência as desgraças previsíveis e carpir junto com os demais as desgraças acontecidas; não que o mundo lhe agradeça nem saiba sequer que esse estúpido coração existe. Mas essa é a outra servidão do amor em que ele se compraz - o misterioso sentimento de fraternidade que não acha nenhuma China demasiado longe, nenhum negro demasiado negro, nenhum ente demasiado estranho para o seu lado sentir e gemer e se saber seu irmão.
E tem o pai morto e a mãe viva, tão poderosos ambos, cada um na sua solidão estranha, tão longe dos nossos braços.
E tem a pátria que é coisa que ninguém explica, e tem o Ceará, valha-me Nossa Senhora, tem o velho pedaço de chão sertanejo que é meu, pois meu pai o deixou para mim como o seu pai já lho deixara e várias gerações antes de nós, passaram assim de pai a filho.
E tem a casa feita pela nossa mão, toda caiada de branco e com janelas azuis, tem os cachorros e as roseiras.
E tem o sangue que é mais grosso que a água e ata laços que ninguém desata, e não adianta pensar nem dizer que o sangue não importa, porque importa mesmo. E tem os amigos que são os irmãos adotivos, tão amados uns quanto os outros.
E tem o respeitável público que há vinte anos nos atura e lê, e em geral entende e aceita, e escreve e pede providências e colabora no que pode. E tem que se ganhar o dinheiro, e tem que se pagar imposto para possuir a terra e a casa e os bichos e as plantas; e tem que se cumprir os horários, e aceitar o trabalho, e cuidar da comida e da cama. E há que se ter medo dos soldados, e respeito pela autoridade, e paciência em dia de eleição. Há que ter coragem para continuar vivendo, tem que se pensar no dia de amanhã, embora uma coisa obscura nos diga teimosamente lá dentro que o dia de amanhã, se a gente o deixasse em paz, se cuidaria sozinho, tal como o de ontem se cuidou.
E assim, em vez da bela liberdade, da solidão e da música, a triste alma tem mesmo é que se debater nos cuidados, vigiar e amar, e acompanhar medrosa e impotente a loucura geral, o suicídio geral. E adular o público e os amigos e mentir sempre que for preciso e jamais se dedicar a si própria e aos seus desejos secretos.
Prisão de sete portas, cada uma com sete fechaduras, trancadas com sete chaves, por que lutar contra as tuas grades?
O único desabafo é descobrir o mísero coração dentro do peito, sacudi-lo um pouco e botar na boca toda a amargura do cativeiro sem remédio, antes de o apostrofar: Te dana, coração, te dana!
Texto extraído do livro:
Um alpendre, uma rede, um açude - 100 crônicas escolhidas. Rachel de Queiroz. Editora Siciliano. São Paulo. 1993 p. 101-103.
Graciliano Ramos
Biografia
Graciliano Ramos (1892-1953) foi escritor, revisor de jornal e diretor a Imprensa Oficial de Alagoas. É um dos grandes nomes da Segunda Geração do Modernismo brasileiro. Grande expoente do romance regionalista, Graciliano apresenta estilo marcante com textos secos e enxutos. Suas principais obras são Vidas Secas e São Bernardo, que abordam temas como a seca, o corenelismo, a miséia e a força do povo nordestino.
Durante o Estado Novo, ao ser acusado de ligações com o Partido Comunista Brasileiro, Graciliano é preso. As experiências vividas na prisão seriam, posteriormente, relatadas em seu livro Memórias do Cárcere.
Graciliano escreveu crônicas para os jornais O Índio (Palmeira dos Índios), Jornal de Alagoas (Maceió) e Paraíba do Sul (Paraíba do Sul, RJ), sendo que muitas delas forma reunidas em livros.
Crônica publicada no jornal Paraíba do Sul, em 20 de maio de 1915.
IX
O vendedor de jornais é o tipo mais despreocupado e alegre do mundo.
Tem uma alma de pássaro.
Claro está que nos não referimos ao carrancudo português que, em meio de uma chusma de folhas metodicamente dispostas, passa os dias sentado, com as pernas cruzadas no ponto de reunião da Rua do Ouvidor com o Largo de São Francisco, na Brahma, nas portas dos cafés da Avenida, em toda a parte. Não aludimos tampouco ao grave italiano de bigodeira espessa nem ao "carcamano" que, de bolsa a tiracolo, apregoa uma algaravia "à la diable", a Nôtizia e o Zêculo.
Queremos falar do pequenino garoto de dez anos, o brasileirito trêfego, ativo, tagarela como uma pega, travesso como um tico-tico.
Está sempre a rir, sempre a cantar. Canta o dia inteiro, num tom arrastado, apregoando as revistas que vende.
Por aqui, por ali, vai, vem, corre, galopa, atravessa as ruas com uma rapidez de raio, persegue os veículos, desliza entre os automóveis como uma sombra. Parece invulnerável.
É assim uma espécie de pensionista do público - arrebata as pontas de charuto que se jogam à rua e surrupia, para revender, os jornais que se deixa esquecidos nos bancos dos passeios. Se pode à socapa, deita a mão a alguma dessas pirâmides de frutos que sedutoramente se elevam às portas das mercearias.
É extraordinária a celeridade com que ele se transporta de um lugar para outro. Anuncia no Leme, na Tijuca, em Niterói, um jornal que a gente pensa ainda estar no prelo. Dir-se-ia que tem asas.
Fuma, bebe aguardente, pragueja, solta pilhérias torpes, pisca os olhos maliciosamente à passagem das mulheres, canta trovas obscenas com a música da "Cabocla de Caxangá".
Torna-se importuno às vezes, quando, a correr pelas plataformas dos bondes, fazendo reviravoltas de símio para escapar à sanha de algum condutor rabugento, nos atordoa os ouvidos com estupendos gritos estridentes.
Nada lhe empana a limpidez de espírito, nada. Está tão habituado a anunciar todos os dias "um grande atentado, um pavoroso incêndio, a prisão do célebre bandido Fulano", que afinal acaba por encarar todos esse fatos indeferentemente.
Tem gestos próprios e expressões peculiares. Para ele um assassínio ou um suicídio é simplesmente uma "encrenca". Um conflito é um "robo". Sua interjeição predileta é uê, que aliás é usada por toda a gente carioca.
Parece que desconhece hierarquias e vaidades tolas, porque não empresta títulos a nenhum nome. Diz: "O partido do Pinheiro, discursos do Ruy Barbosa, o governo do Nilo Peçanha", como se todos os cabecilhas da República fossem apenas vendedores de jornais.
Fala sobre política, conhece o valor de nossos parlamentares, discute os principais episódios da conflagração européia, critica os atos do poder e emprega imoderadamente esses vistosos adjetivos que figuram nos cabeçalhos dos artigos importantes para engodar o público incauto.
Detesta a monotonia dos tempos de paz. Gosta das revoluções, dos motins, das grossas "mixórdias" que lhe proporcionam ocasiões de ver todas as folhas arrebatadas, sem que haja necessidade de ele gritar como nos dias ordinários.
Não é somente o jornalista que explora vantajosamente os crimes - ele, o garoto endiabrado, também sabe tirar partido das mais insignificantes perturbações da ordem, revestindo todos os fatos de acessórios que lhes dão proporções extraordinárias. Parece que tem o dom de pôr um grande vidro de aumentar em cima dos acontecimentos.
É astucioso, impostor, velhaco.
Com uma finura de comerciante velho, emprega artimanhas de mestre, complicados ardis, artifícios que são uma obra-prima de sutileza, tudo para embair os transeuntes. Mente apregoando sedutoras notícias fantásticas.
Enfim, sob certos pontos de vista, o pequeno garoto vendedor de jornais é uma espécie de jornalista em miniatura...
Extraído do livro
Linhas tortas. Graciliano Ramos. Editora Record. 11ª Edição. Rio de Janeiro. 1984. p. 29 - 31.
Olavo Bilac
Biografia
Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac (1865-1918) é dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e o autor de nosso Hino à Bandeira. Foi jornalista e poeta. Fundou diversos jornais que duraram pouco tempo. Sempre esteve muito envolvido com política, chegando a ser perseguido e preso. É um dos principais representantes do Parnasianismo brasileiro, merecendo destaque poesias como Via-Láctea, Profissão de Fé e O caçador de esmeraldas.
Bilac escreveu, também, diversas crônicas. Precisou, entretanto, simplificar bastante a linguagem rebuscada que costumava usar em seus poemas e textos em prosa. Essa maleabilidade de Bilac é um bom exemplo da adaptação que os escritores tinham (e ainda têm) de fazer na hora de escrever crônicas a fim de tornar o texto mais descontraído e simples.
Crônica publicada, provavelmente, no jornal Gazeta de Notícias.*
Menor Perverso
É este o título, com que aparece em todos os jornais a notícia de um caso triste, - uma criança de três anos assassinada por outra de dez, em condições que ainda não foram bem tiradas a limpo. Diz-se que o "menor perverso" ensopou em espírito de vinho as roupas da vítima e ateou-lhes fogo. Propositalmente? parece impossível... Mas nada é impossível na vida.
O fato é que, consumado o seu ato de perversidade (ou de imprudência?) o pequeno fugiu, e andou vagando pelas ruas, até que, já tarde, exausto, banhado em lágrimas, foi encontrado na praça da República e conduzido para uma delegacia policial. E os jornais, terminando a narração do caso triste, pedem quase todos, em quase unânime acordo de idéia e de expressão, que "se castigue esse precoce facínora, cujos instintos precisam ser refreados".
Que se castigue, como? Metendo-o na Correção? mandando-o para o Acre? fuzilando-o?
A ocasião é oportuna para mais uma vez se verificar quanto estamos mal aparelhados para atender às múltiplas necessidades da assistência social. Um criminoso de dez anos não é positivamente um criminoso... Se é verdade que esse menino conscientemente praticou a maldade de que é acusado, o nosso dever não é castigá-lo: é salvá-lo de si mesmo, dos seus maus instintos, das suas tendências para o exercício do mal. Como? naturalmente, dando-lhe uma educação especial, uma certa disciplina de espírito. Mas onde? É aqui que surge a dificuldade, e é aqui que somos forçados a reconhecer que, se estamos muito adiantados em matéria de politicagem e parolagem, ainda estamos atrasadíssimos em matéria de verdadeira civilização...
Já sei que há por aí uma Escola Correcional. Mas, ainda há pouco tempo, o que se soube da vida íntima dessa escola serviu apenas para mostrar que, lá dentro, os pequenos maus, pelo vício da organização do estabelecimento, estão arriscados a ficar cada vez piores. Tudo quanto se refere à assistência pública ainda está por fazer no Brasil: asilos, escolas correcionais, penitenciárias, presídios, não têm fiscalização efetiva. Só pensamos nessas casas de beneficência ou de correção, quando um escândalo, dos que há dentro delas, faz explosão cá fora, comovendo-nos ou indignando-nos. Então, há uma grita convulsa, um grande espalhafato, um grande dispêndio de artigos pelas folhas e de atividade pela polícia; mas, logo depois, tudo volta ao mesmo estado... à espera de novo escândalo.
Tive muita pena da pobre criança de três anos, morta no meio de horríveis torturas. Mas tenho também muita pena dessa outra criança, que uma brincadeira funesta (ou uma inconsciente moléstia moral, perfeitamente curável) levou à prática de um ato tão cruel. Nesse pequeno infeliz, que os jornais consideram um grande criminoso, há um homem que se vai perder, por nossa culpa, - porque não lhe podemos dar o tratamento que a sua enfermidade requer...
Texto extraído do livro:
Obra reunida. Olavo Bilac. Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1997. p. 737-738.
* No início do livro Ironia e piedade, que integra Obra reunida, Olavo Bilac escreve:
"Quase todas estas páginas foram publicadas na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro. (...)" (Obra reunida, p. 715)
Machado de Assis
Biografia
Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) é considerado o maior escritor realista do Brasil e, provavelmente, o maior escritor da literatura brasileira. Nasceu numa família muito humilde e, para ajudar a família, começou a trabalhar como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional em 1856. De 1858 em diante escreve para diversos jornais importantes com regularidade.
Dentre suas principais obras estão seus contos (O Alienista e A Cartomante estão entre os mais famosos) e os romances Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro. Foi o principal fundador da Academia Brasileira de Letras e o seu primeiro presidente. A crônica brasileira moderna tem, em Machado de Assis, um dos seus principais fundadores. Machado escrevia suas crônicas sob pseudônimos. Só 40 anos após sua morte é que se descobriu o verdadeiro autor das chamadas Crônicas de Lélio.
Na crônica abaixo, Machado de Assis aborda com ironia a questão da abolição da escravatura, que havia ocorrido no dia 13 de maio de 1888.
Crônica publicada no jornal Gazeta de Notícias, em 19 de maio de 1888.
Bons dias!
Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário fôr, que tôda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.
Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.
No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as idéias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as mesmas idéias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado.
Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembléia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo.
No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:
- Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que...
- Oh! meu senhô! fico.
- ...Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho dêste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos...
- Artura não qué dizê nada, não, senhô...
- Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.
- Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Êle continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe bêsta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas tôdas que êle recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.
O meu plano está feito; quero ser deputado,e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a tôda a gente que dêle teve notícia; que êsse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples suposições) é então professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.
Boas noites.
Texto extraído do livro
Obra Completa, Vol III. Machado de Assis. 3ª edição. José Aguilar, Rio de Janeiro. 1973. p. 489 - 491.
José de Alencar
Biografia
José Martiniano de Alencar (1829-1877) é um dos grandes nomes da literatura brasileira. Foi advogado, jornalista, jurista, professor, orador, político, romancista, poeta e dramaturgo. Escreveu livros que foram marcos do Romantismo brasileiro: O Guarani e Iracema. Escreveu também algumas crônicas, que foram publicadas no Correio Mercantil em forma de folhetins, chamados Ao Correr da pena. Mais tarde, esses textos foram reunidos num livro, que recebeu o mesmo nome.
Na época de Alencar a crônica era um pouco diferente da que conhecemos hoje e parecia-se muito mais com os folhetins publicados na Europa daquele período. Alencar escrevia textos comentando fatos ocorridos durante a semana. Com isso, seu texto tinha dois aspectos: um informativo, já que tinha a função de informar os leitores, e um literário, pois o escritor desenvolvia um estilo próprio de escrever seus textos.
Crônica publicada no jornal Correio Mercantil, em 19 de novembro de 1854.
Rio, 19 de novembro
Se a mitologia dos povos antigos tivesse dado formas de mulher, de fada ou ninfa, às semanas, como fêz com as horas, não me veria às vêzes em tão sérios embaraços para escrever esta revista.
Em lugar de estar a cogitar idéias, a parafusar novidades, e a lembrar-me de fatos e coisas passadas, pediria emprestado a algum dos tipos da grande galeria feminina as feições e os traços para desenhar o meu original.
Assim, quando me viesse uma semana alegre e risonha, mas muito inconstante, com uns dias cheios de nuvens, e outros límpidos e brilhantes, iluminados pelos raios esplêndidos do sol, uma semana elegante de teatros e de bailes, imaginaria alguma fada de formas graciosas, de olhos grandes, com uma certa altivez misturada de uma dose sofrível de loureirismo.
Vestiria a minha fada de branco com algumas fitas côr-de-rosa, pedir-lhe-ia que me contasse com tôda a graça e travessura do seu espírito os segredos de suas horas e de seus instantes.
Ao contrário, se fôsse uma semana bem calma e bem tranqüila, em que os dias corressem puros e serenos, em que fizesse umas belas noites de luar bem suaves e bem calmas, de céu azul e de estrêlas cintilantes, lembrar-me-ia de alguma moreninha da minha terra, de faces côr de jambo, ojos adormidillos, como dizem os espanhóis.
Então escreveria uma poesia, um poema, um romance ou um idílio singelo, e livrava-me assim de meter-me em certas questões graves e importantes que ocupam a atualidade. Faria como o poeta; e limitar-me-ia às pequenas coisas que me tivessem interessado. Nugae, quarum pars parva fuit.
É verdade que, quando me acertasse cair uma semana como esta passada, onde iria eu procurar um tipo, um modêlo que a caracterizasse perfeitamente? Lembro-me de uma mulher, que descreveu Byron, a qual, com algumas modificações, talvez me pudesse bem servir para o caso.
Seu único aspecto (da mulher) valia um discurso acadêmico; cada um de seus olhos era um sermão; na sua fronte estava estampada uma dissertação gramatical. Enfim, era uma aritmética ambulante. Dir-se-ia uma correspondência ou alguma velha polêmica que se houvesse despegado do seu competente jornal, para andar pelo mundo a discutir e argumentar.
Com efeito, só êste tipo imitado de D. Juan poderia dar uma ligeira idéia da semana passada, a qual num formulário de botica podia bem traduzir-se pela seguinte receita: uma dose de sol, duas de chuva e três de maçada. Admirável receita para curar a população desta côrte da febre de novidades que tem produzido a guerra do Oriente.
Os antigos, porém, que fizeram tanta coisa boa, esqueceram-se dessa invenção de personificar a semana, e por conseguinte não há remédio senão deixar as comparações e voltar ao positivo da crônica, desfiando fato por fato, dia por dia.
Aposto que já estais a rir dêste meu projeto, perguntando com os vossos botões que fatos são êstes que descobri na semana passada, que acontecimentos se deram nestes dias, que valham a pena, não já escrever simplesmente, mas contar.
Ides ver. Em primeiro lugar, contar-vos-ei que a semana teve sete dias e sete noites, tal e qual como as outras. Dêstes sete dias muitos foram de chuva, e alguns estiveram tão belos, tão frescos, tão puros, que sentia-se a gente renascer com o sol que vivificava a natureza. As noites foram quase tôdas de inverno e de teatro.
No Provisório estreou a nova cantora, completando-se assim o número das três deusas que devem disputar o pomo de ouro, o qual também foi pomo da discórdia. O público dilettante está por conseguinte arvorado em Paris; e os poetas já se prepararam para cantar a nova Ilíada e as causas terríveis de tão funesta guerra. Et teterrimas belli causas.
Em São Pedro de Alcântara o aparecimento de João Caetano produziu uma noite de entusiasmo e um novo triunfo para o artista distinto, único representante da arte dramática no Brasil.
Infelizmente as circunstâncias precárias do nosso teatro, ou outras causas que ignoramos, não têm dado lugar a que João Caetano forme uma escola sua, e trate de elevar a sua arte, que no nosso país ainda se acha completamente na infância.
É a êste fim que deve presentemente dedicar-se o ator brasileiro. Sua alma já deve estar saciada destês triunfos e dessas ovações pessoais, que são apenas a manifestação de um fato que todos reconhecem. Como ator, já fêz muito para sua glória individual; é preciso que agora como artista e como brasileiro trabalhe para o futuro de sua arte e para o engrandecimento de seu país.
Se João Caetano compreender quanto é nobre e digna de seu talento esta grande missão, que outros, antes de mim, já lhe apontaram; se, corrigindo pelo estudo alguns pequenos defeitos, fundar uma escola dramática que conserve os exemplos e as boas lições do seu talento e a sua experiência, verá abrir-se para êle uma nova época.
O govêrno não se negará certamente a auxiliar uma obra tão útil para o nosso desenvolvimento moral; e, em vez de vãs ostentações, de coroas e de versos que se procuram engrandecer ùnicamente pelo assunto, terá o que lhe tem faltado até agora, o apoio e a animação da imprensa desta côrte.
Uma das coisas que têm obstado a fundação de um teatro nacional é o receio da inutilidade a que será condenado êste edifício, com o qual decerto se deve despender avultada soma. O gôverno não só conhece a falta de artistas, como sente a dificuldade de criá-los, não havendo elementos dispostos para êsse fim.
Não temos uma companhia regular, nem esperanças de possuí-Ia brevemente. A única cena onde se representa em nossa língua ocupa-se com vaudevilles e comédias traduzidas do francês, nas quais nem o sentido nem a pronúncia é nacional.
Dêste modo ficamos reduzidos ùnicamente ao teatro italiano, para onde somos obrigados, se não preferimos ficar em casa, a dirigirmo-nos tôdas as noites de representação, quer cante a Casaloni, quer encante a Charton, quer descantem as coristas. Tudo é muito bom, visto que não há melhor.
Já algumas vêzes temos censurado a diretoria do teatro por certas coisas que nos parece se podem melhorar sem grandes sacrifícios. Hoje cumpre-nos fazer-lhe uma justiça, e até um elogio, que ela merece sem dúvida alguma, pela resolução que nos consta ter tomado de reparar o edifício e iluminá-lo a gás.
A polícia também tem-se esmerado em fazer cessar as cenas tumultuárias e desagradáveis que se iam tornando tão freqüentes naquele teatro, e que, se continuassem, acabariam por afugentar dêle os apaixonados da música de batuque.
Não é, porém, ùnicamente no teatro que a polícia tem dado provas de atividade. Efetuou-se esta semana a prisão de um moedeiro falso, que se preparava a montar uma fábrica dessa indústria lucrativa.
O crime de moeda falsa é um dos mais severamente punidos em todos os países, porque ameaça a fortuna do Estado e a dos particulares. Entretanto não acho razão no legislador em ter punido ùnicamente o falsificador de moeda, deixando impunes muitos outros falsificadores bem perigosos para a nossa felicidade e bem-estar.
Todos os dias lemos nos jornais anúncios de dentistas, de cabeleireiros e de modistas, que apregoam postiços de tôdas as qualidades, sem que a lei se inquiete com semelhantes coisas.
Entretanto imagine-se a posição desgraçada de um homem que, tendo-se casado, leva para casa uma mulher tôda falsificada, e que de repente, em vez de um corpinho elegante e mimoso, e de um rostinho encantador, apresenta-lhe o desagradável aspecto de um cabide de vestidos, onde tôda a casta de falsificadores pendurou um produto de sua indústria.
Quando chegar o momento da decomposição dêste todo mecânico - quando a cabeleira, o ôlho de vidro, os dentes de porcelana, o peito de algodão, as anquinhas se forem arrumando sôbre o toilette - quem poderá avaliar a tristíssima posição dessa infeliz vítima dos progressos da indústria humana!
Nem ao menos as leis lhe concedem o direito de intentar uma ação de falsidade contra aquêles que o lograram, abusando de sua confiança e boa-fé. É uma injustiça clamorosa que cumpre reparar.
Um homem qualquer que nos dá a descontar uma letra de uns miseráveis cem mil réis, falsificada por êle, é condenado a uma porção de anos de cadeia. Entretanto aquêles que falsificam uma mulher, e que desgraçam uma existência, enriquecem e riem-se à nossa custa.
Deixemos esta importante questão aos espíritos pensadores, aos amigos da humanidade. Não temos tempo de tratá-la com a profundeza que exige; senão, resumiríamos o quadro de tôdas as desgraças que produzem não só aquelas falsificações do corpo, mas também muitas outras, como um olhar falso, um sorriso fingido, ou uma palavra mentida.
Demais, temos ainda de falar de uma outra medida do chefe de polícia a respeito dos cães, e que interessa extraordinàriamente a segurança pública. O que cumpre é zelar a sua execução para que não se torne letra morta, e faça cessar o perigo que corremos todos os dias de encontrarmos a cada momento na rua ou no passeio a morte do hidrófobo.
Afonso Karr levou dois anos a escrever para conseguir que a polícia de Paris adotasse esta útil medida de segurança pública, a que ordinàriamente damos tão pouco cuidado, e muitas vêzes mesmo nos revoltamos por um mal entendido sentimento de humanidade.
Um dos maiores obstáculos que êle encontrou sempre foram certos prejuízos, certos erros consagrados e que todo o mundo repete, sem refletir, nem compreender o sentido das palavras que profere.
Assim, desde a antiguidade se diz que o cão é o amigo fiel do homem, o tipo e o môdelo da amizade.
Êste consentimento unânime, diz o escritor francês, é uma singular revelação do caráter do homem. O cão obedece sem reflexões, se submete a todos os caprichos e a tôdas as vontades sem distinção; quando o castigam, em vez de se defender, roja-se aos pés de seu senhor e caricia a mão que o castigou. E é isto o que o homem chama um amigo!
Já se vê que o sentimento não é tão nobre como o parece a princípio. Tôdas estas vãs declamações dos poetas sobre êsse animal, que dizem representar o símbolo da fidelidade, dão uma bem mesquinha idéia do coração humano.
Não é, pois, o prazer de possuir um autômato, que se move a nossa vontade, que pode compensar um dos maiores riscos a que estamos sujeitos, e para o qual olhamos indiferentemente.
Texto extraído do livro:
Ao correr da pena. José de Alencar. 2ª edição. Edições Melhoramentos. São Paulo. p. 87-92.
1 Comentários:
Oi Rita,
Fiquei sabendo sobre o seu trabalho através do Prof. Augusto. Meu nome é Vanessa e escrevo Contos e Poemas, tenho muito interesse em publicar um livro, mas gostaria imensamente da sua opinião sobre os meus escritos.
Ficarei honrada com a sua visita, meu blog é o Escritora de Artes.
www.escritoradeartes.com
Saudações e até breve!
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