Compasso de Espera
Tudo começou naquela noite anos atrás. Tinha ido assistir a um festival de música no anfiteatro da escola. Estava eufórica e ansiosa pois adorava aquele tipo de música e os minutos que precediam cada apresentação pareciam-me horas.
Finalmente veio o intervalo do show. Resolvi então dar uma volta pois sentia-me impaciente. Quando dei por mim estava diante da porta que dava para o palco. Estava silencioso e escuro. Entrei. Sentei-me numa das cadeiras e pus-me a observar o lugar.
A cortina era negra e separava aquele pedaço do outro, iluminado, onde os concorrentes se apresentavam. Olhei então para o canto onde estavam empilhados entulhos de toda espécie: cadeiras, pincéis, lousas, bancos, etc.
Notei então que não estava sozinha; havia outra pessoa sentada num dos bancos porém preferia ignorar a minha presença.
Aproximei-me. Era um rapaz de uns dezessete anos.
_Oi.
Insisti.
_Vou ficar aqui um pouco. Tudo bem?
_É.
Silêncio...
_É, pelo jeito você não está afim de papo.
_Não estou de muito bom humor.
--Você não vai tocar no próximo intervalo? Ânimo então!
_Tô me lixando!
_Estou com uma leve impressão de que não agradei. Tudo bem...
Já no corredor encontrei uma amiga.
_Que cara, aconteceu alguma coisa?
_Nada não, é que eu acabei de conhecer uma pessoa.
_E isso lá é motivo?
Pode ser. Não sei...
Um tempo...outro tempo.
Não sabia ao certo o que ocorreria. Tinha uma vaga idéia apenas; era vedado qualquer conhecimento sobre o que acontecia a partir do momento em que se tiravam os relógios, sim, porque os relógios eram recolhidos.
Entrei naquela saleta da casa em que havíamos combinado de nos encontrar; era pequena com dois sofás simples e uma poltrona perto da porta. Quatro de meus companheiros já estavam lá. Neles reconheci duas amigas.
Tive um momento de dúvida; não sabia ao certo porque estava ali e tudo parecia sem sentido, até que optei por achar que estava ali por ânsia de viver, pelo desejo de descobrir porque cada um é diferente do outro.
Estávamos a espera do sexto companheiro que até aquela hora não aparecera.
Eu sabia que nem todos que ali estavam haviam escolhido entre ir e ficar. Quem sabe o sexto que não aparecia não fora convencido o bastante?
Finalmente após longa espera ele chegou. Levei um choque.
Reconheci naquele carrancudo e silencioso personagem o garoto de outrora. Senti uma sensação esquisita, como se o tempo estivesse se repetindo. O seu olhar depressivo era o mesmo. Podia-se dizer que ele primava pelo laconismo mesmo em seus momentos de cordialidade. Um arrepio percorreu meu corpo. Gelou meu coração. Como se eu estivesse há séculos esperando por ele e pela solidão que me acompanharia.
Algum tempo depois chegamos.
O lugar não era bonito, mas tinha um ar de castelo medieval, rústico, calmo, irradiando paz. Rodeando o prédio enegrecido e carcomido pelo tempo, havia um jardim maravilhoso: pequenas alamedas corriam entre as árvores centenárias que sobressaiam na vegetação cerrada e úmida. O tempo estava chuvoso e eu me lembrei do “jardim das oliveiras”.
O prédio tinha dois andares com duas fileiras de janelas mudas, dando-lhe a aparência do que realmente era: um colégio – quebrando assim para alguns o encanto do lugar.
Nós estávamos ali, dezenas, talvez uma centena de jovens, de todos os tipos, de todas as classes sociais, de todas as cores. Tínhamos vindo pelos mais variados motivos e circunstâncias: curiosidade, desespero, etc.
Ali estava o espelho de nosso tempo: imagens refletidas, algumas até mesmo distorcidas emboloradas , paradas, inertes, estáticas, terrivelmente estáticas.
Ao lado do prédio erguia-se uma igreja de pedra trabalhada simplesmente, escura e com um certo ar de mistério e isolamento do mundo, como que boiando no vácuo.
Já era noite e a única luz era a de algumas velas que ardiam no altar central. Os bancos se perdiam pela obscuridade do lugar. Podia-se ouvir nitidamente o silêncio. Do lado esquerdo, entre dois altares laterais abria-se a boca de um corredor escuro e assustador onde se enfileiravam portas e mais portas até onde se podia ver dentro da escuridão. Deviam encerrar quartos onde outrora dormiam os monges.
Pensei por momentos nas pessoas que deviam ter passado suas vidas numa luta absurda e inútil pelo espírito de fraternidade.
Uma centena de camas vazias foram ocupadas naquele compasso de espera entre o tempo e o tempo.
Havia seres dentro daquele compasso e de quando em quando ouvia-se um barulho de um espelho se quebrando.
O mundo estava em algum lugar lá fora; pelo menos o mundo do outono de Spengler ou o mundo utilitário e sufocado de Mac Luhan;e o mundo das empatias encontrava-se em algum outro compasso muito distante...A única empatia possível ali era com Deus. A única empatia possível era com as nossas próprias consciências. Afinal, aquilo era um retiro espiritual. Na verdade, seria melhor que tivessem denominado o evento como ”mergulho espiritual”, uma vez que nossos espíritos não se retiraram em momento algum. Estávamos expostos, em chagas, dolorosamente expostos, sangrando, chocados, em transe, diante de nós mesmos e da rudeza do desnudamento total.
Então conversamos. Tivemos uma longa conversa. Houve um momento de diálogo entre nós. Senti que o amava desde muito tempo atrás. Fazíamos parte da mesma pauta musical. Sim, éramos notas da mesma melodia que vínhamos compondo há séculos...
De repente, sobramos eu e ele, com dois relógios nas mãos, jogados na selva exterior da realidade de cada um.
O tempo penetrara e se esgotara o compasso .
Interessante...Até onde um ser modifica uma vida...Quão alto as barreiras se erguem...
E eu agora fico aqui pensando : até quando terei como destino, esse passado presente, esse presente ausente, esse compasso de espera, vazio, silencioso, que me envolveu e me aprisionou...
Rita Velosa
Favor citar sempre a autoria.